A presente entrada reproduz na íntegra o texto publicado no catálogo Oliveira Tavares. Una compañera. Madrid, Isegoría, 2024, pp. 8-9. Tradução de António Oliviera Tavares e Fátima Cadeya Álvarez.
Para os olhos se aventurarem. Sobre as paisagens de António Oliveira Tavares
Existe na pintura portuguesa contemporânea uma infinidade de criadores que, a partir de diferentes perspectivas, usos e estratégias, se dedicam com especial acuidade a um olhar profundo sobre a natureza. Em linhas gerais, e nisso manteremos o eixo conceptual da exposição A paisagem vizinha, que comissariamos no Centro Cultural Conde Duque, em Madrid, em 2012[1], a criação contemporânea confronta a paisagem numa dupla direção. A primeira constitui uma estratégia lírica, imaginativa, pode-se dizer, nostálgica. A segunda visa desmascarar a ilusão de uma ordem beatífica para, pelo contrário, confrontar-nos abertamente com o actual estado calamitoso da natureza e de toda a existência. E, se a primeira destas manobras permite arriscar que nos devaneios da natureza empreendidos por grande parte dos artistas contemporâneos se observa um halo melancólico – quando é claro que hoje toda paisagem está talvez irreparavelmente marcada pelo homem -, a segunda abunda explicitamente em conteúdo de advertência. Assim, se a primeira dessas táticas está relacionada à ideia do que poderia ser identificado como “paisagem onírica”, a segunda poderia ser chamada de prática da “paisagem crítica”. A obra de António Oliveira Tavares (Lisboa, 1961) está incluída entre as primeiras. E a sua actual apresentação monográfica em Madrid constitui um duplo motivo de celebração, pois já passou uma década desde suas últimas exposições institucionais em Espanha, que realizou em 2014 no Museu Etnográfico Extremadura González Santana, em Olivença (Badajoz) e no Centro Cultural Centro Las Claras (Antigo Convento de Santa Clara) em Plasencia (Cáceres)[2].
Há na gramática de Oliveira Tavares uma justaposição de elementos discerníveis, como os troncos das árvores que evoluem caprichosamente, com a presença de campos que parecem traduzir áreas cromáticas que produzem um jogo dilatado na retina entre a ilusão tridimensional e a planicidade.
Algumas de suas composições atingem extremos indiscerníveis e pouco compreensíveis como picos recortados contra o céu, mas cuja superfície e a integridade de seus volumes se mostram numa trama cromática secreta que não obedece a uma representação nem mesmo aproximada de fenômenos naturais específicos. Ou então, as copas das árvores parecem flutuar, pois apenas a extremidade do seu tronco foi representada antes da retirada dos galhos, tronco que, visivelmente, carece de tons opacos e, consequentemente, de densidade. O olhar que percorre os acrílicos sobre tela de Oliveira Tavares deve colocar algo de si na interpretação e habitação dessas paisagens evanescentes, desses territórios ambíguos, para ancorá-los numa experiência significativa. Por isso, a poetisa brasileira Letícia Constant questionou-se acertadamente em sua abordagem poética da obra de nosso pintor:
De onde vêm essas imagens que dão a impressão
de precisar de nosso olhar para sobreviver?[3].
Outro aspecto que consideramos notável é que Olivera Tavares tem conseguido transmitir a exuberância e o dinamismo alcançados nas suas pinturas, paradoxalmente, mesmo na ausência de cromatismo, como ocorre numa série de desenhos, feitos em Borba[4] em 2012 em grafite sobre papel ( 29,7 x 42 cm cada) que aparece nesta amostra. Uma família de desenhos que transmite poderosamente a urgência da sua própria execução.
Por fim, apontaremos uma última característica da abordagem de Oliveira Tavares ao género paisagem. Trata-se da ausência flagrante do homem, bem como das suas criações ou dos seus excessos, num território Adâmico que é, ao mesmo tempo, uma exploração nostálgica da luz no artístico e de uma comunhão espiritual no estético. Neste sentido, num texto que nos escreveu no dia 13 de dezembro, Oliveira Tavares explica a sua necessidade de recorrer à natureza como quase urgente, face ao mundo calamitoso, vítima de um processo desenfreado de desmantelamento moral, cultural e social. Assim, ele afirmou eloquentemente que:
No mundo de transição em que vivemos, em que a sobrevivência de tantos animais e ecossistemas está em perigo e a própria humanidade está em perigo existencial, é quase urgente recorrer à natureza. A complexidade do mundo natural sempre me encantou, adoro observar montanhas, ver as curvas de uma flor, o vôo dos insetos, a água correndo nos rios, o orvalho da manhã…
No caso de Oliveira Tavares, esta ausência da humanidade e do humano é tanto mais curiosa quanto grande parte da sua obra se dedica ao género do retrato, ou quando fez uma longa série de apropriações – entre 1992 (com uma citação de Vermeer) e 2008 – de obras de, entre outros, Velázquez, Ingres ou De la Tour, recorrendo sempre, precisamente, a citações dos rostos representados pelos artistas homenageados.
Para terminar, recordamos que, no catálogo publicado por ocasião da sua exposição individual em Lisboa em 2012, Oliveira Tavares reproduziu a segunda das três estrofes que compõem um hino, “Se Deus” para a divindade da natureza, nossa irmã, por um dos heterónimos, e o primeiro dos criados, por Fernando Pessoa: Alberto Caeiro, que não resistimos a recuperar aqui:
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?[5].
A poética de Oliveira Tavares está geminada com o heterônimo pessoano que seu autor fez morrer de tuberculose aos vinte e seis anos, em 1915, pouco depois de criá-lo. É na natureza, na sua densidade e exuberância, no seu instinto e vitalidade, que ele encontra uma companheira para alcançar a transcendência. A pintura do nosso António Oliveira Tavares instaura-se assim numa espécie de mística.
[1] Cfr. Abad Vidal, Julio César: “A paisagem vizinha”, na Fundação ONCE. IV Bienal de Arte Contemporânea. Madrid, Fundação ONCE, 2012, pp. 33-57. Entre os quarenta artistas que integraram a exposição estiveram os criadores portugueses Rui Algarvio, Domingos Loureiro e José Batista Marques.
[2] Em 2021, por seu lado, apresentou a exposição Ponto de Partida, na Galería Arte Joven de Badajoz.
[3] Oliveira Tavares. A Metamorfose do Guerreiro. Amadora, Galeria Artur Bual, 2016, pp. 4-5. A citação vem da pág. 5.
[4] Borba é uma cidade situada no Alentejo, a cerca de 40 km de Badajoz, em cujas proximidades o nosso artista reside “imerso na natureza”, como nos confessou numa entrevista que nos deu no passado mês de Dezembro.
[5] Reproducido en Oliveira Tavares. Do We Need Tress? Lisboa, Galeria do Clube Nacional de Artes Plásticas, 2018, p. 6.
Post scriptum.
El texto original en español puede consultarse en el siguiente enlace:
Pingback: Para que los ojos se aventuren. Sobre los paisajes de António Oliveira Tavares | juliocesarabadvidal